quinta-feira, setembro 29, 2005

Catástrofe para três vozes e um piano



António vive de contratos sucessivos num qualquer departamento do vasto estado. Maria espera, meio perdida, nas longas filas do Centro de Emprego. Ao longe, tão ao longe que até pode ser confundido com o ritmo acelerado de um piano tocado por um louco, a tvi oferece o espectáculo de desgraça e sorrisos demenciais.

Sereno, o país espera um salvador, ou um poeta, ou, simplesmente, um homem gordo e sorridente. Secretamente o país simplesmente espera o que quer que seja. Os factos políticos sobrepõem-se diariamente na sua irrelevância, diz-se a palavra corrupção como se isso fosse o verdadeiro crime: dizer. O país prossegue. Algures, na raia, alguém pára contemplando os campos para lá da fronteira e deprime. Algures alguém deprime. Algures é todo lado.

António vive a contrato e vive feliz. António conhece A., que conhece B., qu é irmão de C., etc. Maria não conhece ninguém. Espera sentada no Centro de Emprego enquanto lê Proust em francês. Se há coisa entendida por todos como arrogante e desnecessária é ler Proust em francês.

O país prossegue, se bem percebo. António será presidente da junta quando perfizer a idade de cinquenta e dois anos, porque o estado também gosta de contos de fadas. Maria trabalhará em vinte e três empregos diferentes durante a sua vida, e o máximo que irá se aproximar de ensinar francês a alguém será cantando canções de embalar na língua de Brel ao filho da vizinha do segundo esquerdo. Um dia Maria morrerá, suponho que António não.

É mesmo este o país que existe. E ao fundo, assemelhando-se a um piano tocado por um louco, a tvi prossegue o espasmódico desfiar de catástrofes da escala de uma rua.

terça-feira, setembro 27, 2005

Poesia Tola

Ambrosius Holbein

Corre Manuel,
alçando o estandarte da utopia,
Percorrendo as ruas de lés a lés,
Sob o silêncio de quem,
da janela, espreita
Com olhos de eterno espanto.

Corre Manuel,
afugentando da memória
as traições do outro que sempre
foi gordo como um burguês, e
sempre foi burguês como um aristocrata,
e aristocrata como republicano,
republicano como presidente
e presidente como rei.

Corre Manuel,
afugentando o fedor dos
que não sonham,
escalando montanhas de
cadáveres putrefactos,
apontando aos céus os sonhos
de uma nação sonhada.

Corre Manuel,
contra a estreita lança da razão,
que vem da raiz direita das coisas
como um salvador das finanças em tropel.
Corre Manuel, corre Manuel.

Não deixes que o teu sonho caia na lama,
não deixes que os canhões esfiapados do homem
das múltiplas-ideias-uma-só te faça
perder o compasso deste poema de rua.

Corre Manuel,
não deixes que esse estreito
rio esquerda
reduza o mar, e o sonho do mar,
a um pobre problema de econometria
ou a uma cassete roubada na feira da ladra.

Corre Manuel,
sem destino outro que não o sonho,
sem outra bandeira para além da palavra,
para longe das traições,
da mudez,
do vozear infecundo
dos idiotas.

Corre Manuel,
acompanha passo a passo
este país desolado,
enfrenta com ele o seu destino,
corre Manuel.

Corre Manuel,
corre com ele para o nada.